Marília Lemos:
“A invenção do avião colocou o Brasil no mapa”
Em
23 de outubro de 1906, em Paris, mais de mil pessoas – entre elas
jornalistas de todo o mundo – assistiram pela primeira vez na história
alguém erguer-se do solo, com recursos de um aparelho mais pesado que o ar,
realizando um vôo planado. A bordo do 14 Bis estava o brasileiro Alberto
Santos Dumont, que tornou-se o homem mais popular da Europa na primeira
década do século 20. Foi celebrado no mundo inteiro, inclusive por
personalidades como o Príncipe Albert 1º, de Mônaco, o inventor Thomas
Edison, o presidente norte-americano Theodore Roosevelt. Depois de 100 anos,
o herói brasileiro ainda é festejado e o centenário do primeiro vôo mereceu
inúmeras comemorações em todo o mundo. Aqui no sul da Flórida, uma
pesquisadora brasileira prepara um livro sobre a vida de Dumont e sobre a
polêmica envolvendo a invenção do avião, que os norte-americanos teimam em
dizer que pertence aos irmãos Wright: Marília Lemos Stratta concedeu
entrevista ao Achei USA e comenta sobre esta controvérsia e sobre outros
fatos da vida do inventor.
Achei - Em 23 de outubro, o mundo comemorou o centenário do primeiro vôo
de avião na história, o 14 Bis, pilotado por Santos Dumont. Qual a
importância deste fato para o Brasil e o que representou este feito para a
humanidade?
O avião é de suma importância para as nossas vidas – e nos orgulha o fato
desta ser a invenção de um brasileiro, especialmente quando vemos a imagem
do nosso país ser tantas vezes associada à violência, desonestidade e ao tão
conhecido jeitinho brasileiro. Alguém no mundo de hoje consegue imaginar a
vida sem essa invenção? E as facilidades proporcionadas como meio de
transporte de pessoas e até mesmo de carga? Para o Brasil foi algo memorável,
pois colocou o país no mapa. E isso muito nos enaltece.
Achei - Por que alguns países insistem em atribuir aos irmãos Wright o
título de inventores do avião?
Somente quase na metade do século 20 os norte-americanos resolve-ram, na
pessoa do diretor do Instituto Smithsonian, que eles tinham sido os
inventores do avião. E porque não? A polêmica sobre o assunto já tinha até
sido esquecida, mas, em resposta a um convite para expor permanentemente o
avião (Flyer) dos Irmãos Wright no Museu Aero-Espacial (Washington DC), os
herdeiros fizeram uma imposição: a de que o Instituto sustentasse a
informação de que os verdadeiros inventores do avião teriam sido os Irmãos
Wright. Esse contrato existe até hoje, mas ninguém conseguiu provar na
prática que o suposto avião conseguiu voar. Ao contrário de todas as
réplicas do 14 Bis, que voam com sucesso, as do Flyer são um fracasso. E o
primeiro vôo público dos Wright somente aconteceu em 1908, ainda com
catapultas e utilizando um motor francês. E, como curiosidade, as rodas só
foram utilizadas por eles tardiamente, em 1910.
Achei - Ou seja, os irmãos Wright não têm qualquer mérito na aviação?
Sinceramente nada que os Wright criaram na área aeronáutica contribuiu para
a evolução do avião ou tão pouco foi usado até hoje. Na verdade, apenas a
primeira morte na história da aviação é atribuída à dupla e teria acontecido
em 1908. Mas temos de concordar com uma coisa: o marketing norte-americano é
forte e mesmo com a frágil história dos Irmãos Wright na criação do avião,
os norte-americanos a defendem arduamente. E quanto ao patriotismo não
podemos falar nada contra, enquanto que infelizmente o brasileiro só conhece
o sentimento de amor à pátria quando se fala de Copa do Mundo de Futebol.
Porém se cada um estudasse com calma, ponderando os fatos, sem que o civismo
nublasse a razão, veria que a história não é realmente como os americanos
contam.
Achei - Dumont, além de ter sido o pai da aviação, é autor de outros
inventos, como o relógio de pulso, não é verdade? Quais as suas outras
contribuições?
Santos Dumont não inventou o relógio de pulso, como alguns historiadores e
conterrâneos dizem, pois ele já era usado há muito tempo por militares e
como jóias nas pulseiras femininas. O que ele fez foi popularizar o uso
entre os civis. Talvez seja ele o responsável pela criação do modelo Dumont,
ao pedir para o seu amigo relojoeiro Cartier um relógio que não tivesse de
manusear. Na época os homens usavam o conhecido relógio de bolso, e ele –
como necessitava de ambas as mãos para conduzir suas invenções aeronáuticas
– ficava impossibilitado de cronometrar suas experiências no ar. Ele criou
varias coisas que ainda são usadas até hoje. Por exemplo, os ailerons,
estabilizadores na ponta das asas, que controlam o giro do avião. É também
responsável pela invenção de uma série de objetos, todos em busca de
soluções práticas para problemas do cotidiano: o chuveiro de água temperada,
que consistia num balde com furos no fundo, alimentado por duas fontes de
água – uma delas quente, aquecida a álcool. Acionando duas alavancas, Santos
Dumont obtinha a mistura certa para um banho confortável. Criou ainda um
mecanismo utilizado em corridas de cães, usado até hoje para promover a
rapidez dos animais. Ah sim, antes de encerrar a lista de inventos, não
podemos dei-xar de citar os hangares. Antes de Santos Dumont, ninguém tinha
pensado onde guardar ou mesmo trabalhar junto aos balões, a salvo das
intempéries. Mas construir um hangar para abrigar os imensos dirigíveis do
final do século 19 até que era fácil. Difícil era abrir e fechar as portas
do galpão – aí Dumont inventou as enormes portas de correr.
Achei - Pouca gente sabe, mas Dumont suicidou-se em 1932. Alguns dizem
que ele estava muito depressivo pelo fato de ver sua invenção sendo usada em
confrontos, como na 1ª Guerra Mundial e na Revolução Constitucionalista.
Isso é verdade?
Para
falar a verdade, Santos Dumont – após inúmeros acidentes aeroespaciais,
desde a época dos balões até o 14-bis – ficou com a saúde muito fragilizada,
o que acabou determinando que ele abandonasse a vida aeronáutica, inclusive
atribui-se a ele uma, duvidosa, esclerose múltipla. Digo duvidosa porque era
a doença da moda, porém ele não apresentava os sintomas somente dessa doença.
Depressão com certeza era uma cons-tante e foi motivo de uma tentativa de
suicídio na Suíça e do suicídio no Guarujá (São Paulo). Mas apontar os
confrontos na 1ª Guerra Mundial ou na revolução Constitucionalista como o
único motivo de seu suicídio é muito simplista. Ele somatizou vários
sentimentos dentro de si, inclusive a frustração pelo fato de os Irmãos
Wright tentarem se apoderar do direito da primazia do vôo. Além disso,
alguns conhecidos até aceitaram que os americanos seriam os inventores do
avião em 1903, como os brasileiros, que não compreendiam que ele não voasse
com seus dirigíveis no Brasil; ele sofreu muito também ao ser acusado de
espião quando foi preso por conta de usar seu telescópio na França e ainda
devido às cobranças do mundo depois de parar de inventar projetos
aeronáuticos.
Achei - Como surgiu o seu interesse por Dumont?
Quando me casei, vim morar nos Estados Unidos e um dia estava na aula de
inglês e tive de ler um texto onde o assunto era a primazia do vôo do avião
pelos Irmãos Wright. A partir daí fui pesquisar na internet e descobri como
o nome de Santos Dumont nos Estados Unidos era desconhecido ou desprezado.
Sim, na história contada por uma grande maioria dos sites norte-americanos
os inventores do avião sãos os Irmãos Wright e quanto ao Santos Dumont,
vemos duas alternativas: ou nunca existiu ou não contribuiu em nada para a
evolução do avião. Isso me chocou e me induziu a buscar mais da história
desse brasileiro que até mesmo entre seus conterrâneos é um desconhecido.
Busquei livros sobre Santos Dumont e minha primeira alternativa foi a
Biblioteca Mario de Andrade, no centro de São Paulo. Lá quase não encontrei
livros a respeito de Dumont e os poucos que encontrei estavam em mau estado.
Decidimos então, eu e meu marido – que mesmo sendo uruguaio se tornou um fã
tão ardoroso do tema quanto eu –, adquirir mais e mais livros. Foi aí que
nos deparamos com um número de obras muito superior ao que imaginávamos.
Temos mais de 70 livros de outros autores sobre o inventor, escritos de sua
própria autoria e outros que dedicam a Dumont um capitulo ou somente uma
menção ao seu nome na história de outros.
Achei - Este farto material e a convivência com familiares de Santos
Dumont não lhe animam a escrever um livro sobre o assunto?
Tenho um material praticamente pronto pra editar um livro, que era para ser
publicado neste ano que se comemora o centenário do vôo do 14-bis. Mas sofri
uma grande perda, o falecimento de minha mãe, o que me causou uma leve
depressão e que me desmotivou a concluir meu projeto. Porém voltei a
escrever e estou trabalhando no livro que traz uma biografia leve de alguns
aviadores, com maior ênfase na primazia do vôo na visão de alguns países
específicos: Brasil, EUA, Alemanha, França e Austrália. Mas há quase três
anos temos um site sobre Santos Dumont (http://www.santos-dumont.net) que
hoje tem diariamente mais de 1500 acessos. O site vai passar por
remodelações e em pouco tempo estaremos disponibilizando muito mais
informações e um banco de fotos bastante mais amplo.
|
Marília e o
marido em visita aos locais onde Dumont viveu |
O casal, durante encontro com a sobrinha-neta
do aviador, Sophia
|
|
Clique aqui e leia o artigo sobre Santos Dumont escrito pela
pesquisadora Marília Lemos