O
QUE EU VI
O QUE NÓS VEREMOS.
São Paulo
1918
SANTOS=DUMONT
Estas notas são
dedicadas aos meus patrícios que desejarem ver
o nosso céu povoado pelos Pássaros do Progresso
Nova
York, 15 de Maio de 1918
Meu
caro Sr. Santos-Dumont
O Aero Club da América
envia-nos uma mensagem de congratulações pela inauguração do primeiro Serviço
Postal Aéreo neste País. Confiamos em que a Linha Postal Aérea inaugurada entre
Nova York, Filadélfia e Washington, que vos leva esta mensagem, será um
primeiro passo para uma rede de linhas postais aéreas que cobrirá o mundo e
será fator predominante na obra de reconstrução que se seguirá à guerra, quando
os exércitos aliados houverem alcançado a vitória gloriosa e final pela causa
da liberdade universal.
Ao rápido desenvolvimento
da navegação aérea no continente seguir-se-ão, em breve, extensos vôos sobre os
mares, e teremos grandes aeroplanos cruzando o Atlântico, os quais facilitarão
não só o estabelecimento da linha postal aérea transatlântica, como a entrega
de aeroplanos dos Estados Unidos aos nossos aliados.
O Aero Club da
América, que tem propugnado pelo
desenvolvimento da aeronáutica desde os vossos primeiros ensaios, ativado e
auxiliado por todos os meios a criação do serviço postal aéreo desde 1911,
sente-se altamente compensado com o estabelecimento desse novo serviço através
dos ares.
Alan R. Hawlei (Presidente)
Esta carta veio encher
de legítima alegria o meu coração que, há já quatro anos, sofre com as notícias
da mortandade terrível causada, na Europa, pela aeronáutica. Nós, os fundadores
da locomoção aérea no fim do século passado, tínhamos sonhado um futuroso
caminho de glória pacífica para esta filha dos nossos desvelos. Lembro-me
perfeitamente que naquele fim de século e nos primeiros anos do atual, no Aero
Club de França que foi, pode-se dizer "O ninho da aeronáutica" e que
era o ponto de reunião de todos os inventores que se ocupavam desta ciência,
pouco se falou em guerra; prevíamos que os aeronautas poderiam, talvez, no
futuro, servir de esclarecedores para os Estados Maiores dos exércitos, nunca,
porém, nos veio à idéia que eles pudessem desempenhar funções destruidoras nos
combates. Bastante conheci todos esses sonhadores, centenas dos quais deram a
vida pela nossa idéia, para poder agora afirmar que jamais nos passou pela
mente, pudessem, no futuro, os nossos sucessores, ser "Mandados" a
atacar cidades indefesas, cheias de crianças, mulheres e velhos e, o que é
mais, atacar hospitais onde a abnegação e o humanitarismo dos rivais reúne, sob
o mesmo teto e o mesmo carinho, os feridos e os moribundos dos dois campos.
Pois bem, isso se repete há quatro longos anos, e quem o "manda fazer"? - O Kaiser!
Façamos, pois, votos
pela vitória dos aliados; triunfem as idéias do Presidente Wilson e se extinga
na terra o militarismo prussiano. Assim como com a Polônia atual a sociedade
suprimiu os cidadãos armados, suprima as matanças da guerra o desejado Exército
das Nações.
Confiante nesse
futuro, reconfortou-me a mensagem do presidente do Aero Club da América, em que
ouvi falar, de novo, da aeronáutica para fins pacíficos, realização de minhas
íntimas ambições, sonho daqueles inventores que só viram no aeroplano um
colaborador da felicidade dos homens.
*
* *
Creio, deveria ser
chamada "época heróica da aeronáutica" a que compreende os fins do
século passado e os primeiros anos do atual. Nela brilham os mais audaciosos
arrojos dos inventores, que quase se esqueciam da vida, por muito se lembrarem
de seu sonho.
Enchem-nos, hoje, do
mais justo entusiasmo os atos de bravura dos aviadores do "front",
como nos encherá de orgulho a notícia da travessia do Atlântico, que prevejo
próxima.
Essa coragem, porém,
que os consagra como heróis, creio, não é maior que a dos inventores, primeiros
pássaros humanos, que, após heróica pertinácia em estudos de laboratório, se
arrojaram a experimentar máquinas
frágeis, primitivas, perigosas. Foram centenas as vítimas dessa audácia nobre,
que lutaram com mil dificuldades, sempre recebidos como "malucos", e
que não conseguiram ver o triunfo dos seus sonhos, mas para cuja realização
colaboraram com o seu sacrifício, com a sua vida.
Não fosse a audácia,
digna de todas as nossas homenagens, dos Capitães Ferber, Lilienthal, Pilcher,
Barão de Bradsky, Augusto Severo, Sachet, Charles, Morin, Delagrange, irmãos
Nieuport, Chavez e tantos outros - verdadeiros mártires da ciência - e hoje
não assistiríamos, talvez, a esse progresso maravilhoso da aeronáutica, conseguido,
todo inteiro, à custa dessas vidas, de cujo sacrifício ficava sempre uma lição.
Penso, a maior parte
dos meus leitores serão jovens nascidos depois dessa época, que já se vai tanto
ensombreando na memória: suplico-lhes, pois, não se esquecerem destes nomes. A
eles cabe, em grande parte, o mérito do que hoje se faz nos ares...
*
* *
A princípio tinha-se
que lutar não só contra os elementos, mas também contra os preconceitos: a
direção dos balões e, mais tarde, o vôo mecânico eram problemas
"insolúveis".
Eu também tive a honra
de trabalhar um pouco, ao lado destes bravos, porém o Todo Poderoso não quis
que o meu nome figurasse junto aos deles.
As primeiras lições
que recebi de aeronáutica foram-me dadas pelo nosso grande visionário: Júlio
Verne. De 1888, mais ou menos, a 1891, quando parti pela primeira vez para a
Europa, li, com grande interesse, todos os livros desse grande vidente da
locomoção aérea e submarina. Algumas vezes, no verdor dos meus anos, acreditei
na possibilidade de realização do que contava o fértil e genial romancista;
momentos após, porém, despertava-se, em mim, o espírito prático, que via o peso
absurdo do motor a vapor, o mais poderoso e leve que eu tinha visto. Naquele
tempo, só conhecia o existente em nossa fazenda, que era de um aspecto e peso
fantásticos; assim o eram, também, os tratores que meu pai mandara vir da
Inglaterra: puxavam duas carroças de café, mas pesavam muitas toneladas...
Senti um bafejo de esperança quando meu pai me anunciou que ia construir um
caminho de ferro para ligar a fazenda à estação da Companhia Mogiana; pensei
que nestas locomotivas, que deviam ser pequenas, iria encontrar base para a
minha máquina com que realizar as ficções de Júlio Verne. Tal não se deu; elas
eram de aspecto ainda mais pesado. Fiquei, então, certo de que Júlio Verne era
um grande romancista.
*
* *
Estava em Paris
quando, na véspera de partir para o Brasil, fui, com meu pai, visitar uma
exposição de máquinas no desaparecido "Palácio da Indústria". Qual
não foi o meu espanto quando vi, pela primeira vez, um motor à petróleo, da
força de um cavalo, muito compacto, e leve, em comparação aos que eu conhecia,
e... funcionando! Parei diante dele como que pregado pelo destino. Estava
completamente fascinado. Meu pai, distraído, continuou a andar até que, depois
de alguns passos, dando pela minha falta, voltou, perguntou-me o que havia.
Contei-lhe a minha admiração de ver funcionar aquele motor, e ele me respondeu:
"por hoje basta". Aproveitando-me dessas palavras, pedi-lhe licença
para fazer meus estudos em Paris. Continuamos o passeio, e meu pai, como distraído,
não me respondeu. Nessa mesma noite, no jantar de despedida, reunida a família,
entre nós, dois primos de meu pai, franceses e seus antigos companheiros de
escola, pediu-lhes ele que me protegessem, pois pretendia fazer-me voltar a
Paris para acabar meus estudos. Nessa mesma noite corri vários livreiros;
comprei todos os livros que encontrei sobre balões e viagens aéreas.
*
* *
Diante do motor a
petróleo, tinha sentido a possibilidade de tornar reais as fantasias de Júlio
Verne.
Ao motor a petróleo
dei, mais tarde, todo inteiro, o meu êxito.
Tive a felicidade de
ser o primeiro a emprega-lo nos ares.
Os meus antecessores
nunca o usaram. Giffard adaptou o motor a vapor; Tissandier levou consigo um
motor elétrico. A experiência demonstrou, mais tarde, que tinham seguido
caminho errado.
*
* *
Uma manhã, em São
Paulo, com grande surpresa minha, convidou-me meu pai a ir à cidade e,
dirigindo-se a um cartório de tabelião, mandou lavrar escritura de minha
emancipação. Tinha eu dezoito anos. De volta à casa, chamou-me ao escritório e
disse-me: "Já lhe dei hoje a liberdade; aqui está mais este capital",
e entregou-me títulos no valor de muitas centenas de contos. "Tenho ainda
alguns anos de vida; quero ver como você se conduz: vai para Paris, o lugar
mais perigoso para um rapaz. Vamos ver se você se faz um homem; prefiro que não
se faça doutor; em Paris, com o auxílio de nossos primos, você procurará um
especialista em física, química, mecânica, eletricidade, etc., estude essas
matérias e não se esqueça que o futuro do mundo está na mecânica. Você não
precisa pensar em ganhar a vida; eu lhe deixarei o necessário para
viver..."
*
* *
Chegado a Paris, e com
o auxílio dos primos, fui procurar um professor. Não poderia ter sido mais
feliz; descobrimos o Sr. Garcia, respeitável preceptor, de origem espanhola,
que sabia tudo. Com ele estudei por muitos anos.
Nos livros que comigo
levara para o Brasil, li nomes de várias pessoas que faziam ascensões em balão,
por ocasião de festas públicas. Eram as únicas que, então, se ocupavam da
aeronáutica.
Sem nada dizer ao meu
professor, nem aos meus primos, procurei no Anuário Bottin os nomes desses
senhores, desejosos de fazer uma ascensão. Alguns já não se ocupavam mais do
assunto, outros me apavoraram com os perigos de subir e com o exagero dos
preços. Um, porém, houve que, após me informar de todos os meios, pediu-me mais
de mil francos para levar-me consigo, devendo eu pagar, ainda, todos os
estragos que fossem causados pelo balão na sua volta à terra.
Era ameaçadora a
condição, pois esse senhor já uma vez tinha derrubado a chaminé de uma usina,
outra vez, descera sobre a casa de um camponês e, incendiando-se o gás do
balão, em contato com a chaminé, pusera fogo à casa...
Vieram-me à memória os
conselhos de meu pai e os seus graves exemplos de sobriedade e economia. Ia eu
gastar em algumas horas quase que a renda de um mês inteiro e, muito
provavelmente, a renda de todo o ano!
Desanimei de fazer uma
ascensão. Era muito complicado...
*
* *
Durante vários anos,
estudei e viajei.
Segui com interesse,
nos jornais ilustrados, a expedição de André ao Pólo Norte; em 1897, estava eu
no Rio de Janeiro quando me chegou às mãos um livro em que se descrevia com
todos os seus pormenores, o balão dessa expedição.
Continuava eu a
trabalhar em segredo, sem coragem de pôr em prática as minhas idéias; tinha
pouca vontade de arruinar-me. Esse livro, entretanto, do construtor Lachambre,
esclareceu-me melhor e decidiu inabalavelmente minha resolução.
Parti para Paris...
*
* *
- Quero subir em balão.
Quanto me pedem por isso?
- Temos justamente um
pequeno balão no qual o levaremos por 250 frs.
- Há muito perigo?
- Nenhum.
- Em quanto ficarão os
estragos da descida?
- Isso depende do
aeronauta; meu sobrinho, aqui presente, M. Machuron, que o acompanhará, tem
subido dúzias de vezes e nunca fez estrago algum. Em todo caso, haja o que
houver, o Sr. não pagará nada mais que os duzentos e cinqüenta francos e dois
bilhetes de caminho de ferro para a volta.
- Para amanhã de manhã
o balão!...
Tinha chegado a vez...
*
* *
Fiquei estupefato
diante do panorama de Paris visto de grande altura; nos arredores, campos
cobertos de neve... Era inverno.
Durante toda a viagem
acompanhei as manobras do piloto; compreendia perfeitamente a razão de tudo
quanto ele fazia.
Pareceu-me que nasci mesmo para a aeronáutica. Tudo se
me apresentava muito simples e muito fácil; não senti vertigem, nem medo.
E tinha subido...
*
* *
De volta, em caminho
de ferro, pois descêramos longe, transmiti ao piloto o meu desejo de construir,
para mim, um pequeno balão.
Tive como resposta que
a fábrica a que ele pertencia, tinha, havia pouco, recebido amostras de seda do
Japão de grande beleza e peso insignificante.
No dia seguinte estava
eu no atelier dos construtores.
Apresentaram-me projetos,
mostraram-me sedas... Propuseram-me fazer construir um balão de 250 metros
cúbicos...
Tomei a palavra: - O
Sr. disse-me ontem que o peso dessa seda, depois de envernizada, é de tantas
gramas; o gás hidrogênio puro eleva tal peso; desejo uma barquinha minúscula e,
pelo que vi ontem, um saco de lastro me será bastante para passar algumas horas
no ar; eu peso 50 quilos; conclusão: - quero um balão de cem metros cúbicos.
Grande espanto!
Creio mesmo que
pensaram que eu era doido.
Alguns meses depois, o
"Brasil", com grande espanto de todos os entendidos, atravessava
Paris, lindo nAlguns meses depois, o
"Brasil", com grande espanto de todos os entendidos, atravessava
Paris, lindo na sua transparência, como uma grande bola de sabão.
As suas dimensões
eram: diâmetro 6 metros, volume 113 metros cúbicos, a seda empregada (113
metros quadrados) pesava 3"500, envernizada e pronta, 14 quilos. A rede
envolvente e cordas de suspensão pesavam 1.800 gramas. A barquinha, 6 quilos. O
guide-rompe (corda de compensação), comprido de 6 metros, pesava 8 quilos, uma
ancorazinha, 3 quilos.
Os meus cálculos
tinham sido exatos: parti com mais de um saco de lastro.
Este minúsculo
"Brasil" despertou grande curiosidade. Era tão pequeno que diziam que
eu viajava com ele dentro da minha mala!
Nele e em outros, fiz,
em vários meses, amiudadas viagens, em que ia penetrando na intimidade do
segredo das manobras aéreas.
*
* *
Comprei um dia um
triciclo a petróleo. Levei-o ao "Bois de Boulogne" e, por três
cordas, pendurei-o num galho horizontal de uma grande árvore, suspendendo-o a
alguns centímetros do chão. É difícil explicar o meu contentamento ao verificar
que, ao contrário do que se dava em terra, o motor do meu triciclo, suspenso,
vibrava tão agradavelmente que quase parecia parado.
Nesse dia começou
minha vida de inventor.
Corri à casa, iniciei
os cálculos e os desenhos do meu balão n.º 1.
Nas
reuniões do Automóvel Club - pois o Aero Club não existia ainda - disse aos
meus amigos que pretendia subir aos ares levando um motor de explosão sob
um balão fusiforme. Foi geral o espanto: chamavam de loucura o meu projeto.
O hidrogênio era o que havia de mais explosivo!
"Se pretendia
suicidar-me, talvez fosse melhor sentar-me sobre um barril de pólvora em
companhia de um charuto aceso". Não encontrei ninguém que me encorajasse.
Não obstante, pus em
construção o meu n.º 1, e logo depois o n.º 2.
As minhas experiências
no ar começaram em fins de 1898. Foram grandemente interessantes, não pelo
resultado obtido, mas pela surpresa de ver, pela primeira vez, um motor trepidando
e roncando nos ares.
As experiências com
esse modelo não surtiram o resultado desejado.
Eu tinha sido
audacioso demais, fabricando um balão demasiado alongado para os meios de que,
então, dispunha.
Abandonei essa forma e
construí um balão ovóide.
*
* *
Com o primeiro tipo
tive uma terrível queda de várias centenas de metros, que muito me ameaçou de
ver naquele o meu último dia. Não perdi, porém, o alento. Com esse novo
aparelho, o meu n.º 3, atravessei a cidade de Paris.
Houve grande barulho
em torno dessa experiência. Creio mesmo que, se as primeiras deram lugar à
fundação do Aero Club, esta foi que determinou a instituição do prêmio Deutsch.
De fato, com a
travessia que fiz de Paris, começou-se a discutir se seria possível ir de um
ponto a outro e voltar ao de partida, em balão.
Grandes
controvérsias...
*
* *
A uma das assembléias
do Aero Club compareceu um senhor, desconhecido de todos nós, muito tímido,
muito simpático, que ofereceu, ele, Deutsch de la Meurthe, um prêmio de cem mil
francos ao primeiro aeronauta que, dentro dos cinco anos seguintes, partindo de
St. Cloud, que era então onde se achava o Parque do Club, circunavegasse a
Torre Eifel e voltasse ao ponto de partida, tudo em menos de 30 minutos.
Acrescentou mais, que no fim de cada ano, caso não fosse ganho o prêmio, se
distribuíssem os juros do dinheiro entre os que melhores provas tivessem
obtido.
Era sentir geral que
cinco anos se passariam sem que o prêmio fosse ganho.
A direção do balão,
naquele tempo, era um desejo sem promessa.
*
* *
No dia seguinte à
instituição do prêmio Deutsch, iniciei a construção do meu n.º 4 e de um hangar
em St. Cloud.
Opinei novamente pelo
balão fusiforme, pois precisava atingir a uma velocidade de mais ou menos 30 km
por hora, o que seria difícil com um balão ovóide. Adquiri o motor mais leve
que encontrei no mercado; tinha a força de 9 HP e pesava 100 quilos. Era a
maravilha de então...
Com esse balão, no ano
de 1900, pouco consegui de bom. Meu único concorrente ao prêmio foi o Sr. Rosc,
cujo balão não conseguiu nunca subir; os juros do prêmio Deutsch me foram
entregue, pois.
Durante o inverno pus
em construção o meu famoso n.º 5, que experimentei no Parque do Aero Club.
Em 12 de julho de
1901, às 3 horas da madrugada, auxiliado por alguns amigos e meus mecânicos,
levei-os para o Hipódromo de Longchamps; comecei a fazer pequenos círculos com
o dirigível, que era verdadeiramente dócil; fui ao bairro de Puteaux e evoluía
por cima de suas inúmeras usinas quando, de repente, ouço um barulho terrível:
uma a uma todas as usinas tinham posto a funcionar seus apitos e sirenes.
Fiz duas ou três
voltas e cheguei novamente a Longchamps.
Fiz um conciliábulo
com meus amigos. Pretendia fazer a volta à Torre Eifel; eles me querem
dissuadir disso, por não estar presente a Comissão do Aero Club. Não me pude
conter; o esporte me atraía; parti. Tudo correu bem até as alturas do
Trocadero, quando senti que o balão não me obedecia mais. Arrebentara-se o cabo
que ligava a roda do governo ao leme da aeronave. Diminuo completamente a
velocidade do motor e manobro para tocar em terra. Fui muito feliz, desci mesmo
no jardim do Trocadero, onde, por ser ainda muito cedo, havia muito poucas
pessoas.
A ruptura se dera em ponto dificilmente acessível;
era necessário uma escada. Vão busca-la; quatro a cinco pessoas a sustem de
pé e, por ela, consigo subir e consertar o cabo. Parti de novo, circunaveguei
a torre e voltei diretamente a
Longchamps, onde já havia muita gente à minha espera, inquieta da demora.
Foi um sucesso
colossal quando cheguei e parei o motor.
Nesse mesmo dia a
imprensa anunciava ao mundo inteiro que estava resolvido o problema da
dirigibilidade dos balões.
*
* *
Aproveito a ocasião
para agradecer à imprensa do mundo inteiro a simpatia com que me cativou e,
principalmente, a que dispensou à "Idea Aérea". Foi graças a isso que
se instituíram prêmios de estímulo e o cérebro dos inventores se pôs a
trabalhar para o aperfeiçoamento da aeronave, até podermos, em 1918, possuir
aeroplanos e dirigíveis que parecem o resultado de uma evolução milenária.
Se quando nas ruas de
Paris apareceu o primeiro automóvel e se quando a Torre Eifel foi
circunavegada, não tivesse a imprensa incentivado essa iniciativas,
acompanhando de perto o seu progresso, não teríamos hoje, estou certo, as locomoções automóvel e aérea, que
são o orgulho da nossa época.
*
* *
Foi neste dia que
começou a minha grande popularidade em Paris; aproveito, pois, também a ocasião
para pagar um tributo ao povo de Paris.
Foi graças aos constantes
aplausos e encorajamento que recebemos, os meus colegas e eu, que encontramos
forças para, diante de tantos insucessos e perigos, continuarmos na luta. É
pois, à clarividência do povo da Cidade Luz que o mundo deve a locomoção aérea.
Não só o povo me
encorajava nas minhas experiências, mas também a sociedade, as altas
autoridades e todos os escritores.
No meu hangar
encontravam-se pessoas de todas as classes e opiniões. Um dia apanharam numa
fotografia a ex-imperatriz dos franceses ao lado de Rochefort. Tinham sido os
maiores inimigos; pois bem, no meu atelier, do qual Rochefort era um
freqüentador assíduo, estavam um ao lado do outro!
Rochefort cobriu-me também
de elogios; não falemos na legião de escritores, especialistas,
como François Peyrey, Besaçon e todos os outros, pelos quais até hoje tenho
uma profunda gratidão.
No dia seguinte, em um
artigo de fundo, M. Jaurés disse que "até então tinha visto procurando
dirigir os balões à "sombra dos homens" hoje viu "um
homem".
*
* *
Recebi felicitações do
mundo inteiro; entre elas, porém, uma, certamente a que mais me honrou e para
mim a mais preciosa, veio assim endereçada, numa fotografia do maior inventor
dos tempos modernos:
"A Santos-Dumont
o Bandeirante dos Ares
Homenagem de
Edison".
Naquela época, em que
a aeronáutica acabava de nascer, não era muito ser considerado o seu
Bandeirante; hoje, porém, que ela existe e vai decidir a sorte da guerra, me é
infinitamente preciosa essa apreciação do homem pelo qual tenho a maior
admiração.
*
* *
No dia 13 de julho de
1901, às 6 horas e 41 minutos, em presença da Comissão Científica do Aero Club,
parti para a Torre Eifel. Em poucos minutos, estava ao lado da torre; viro e
sigo, sem novidade, até o Bois de Boulogne. O sol, mostra-se neste momento e uma
brisa começa a soprar, leve, é verdade, porém, bastante, nessa época, para
quase parar a marcha da aeronave. Durante muitos minutos, o meu motor luta
contra a aragem, que se ia já transformando em vento. Vejo que vou sair do
bosque e talvez cair dentro da cidade. Precipito a descida e o aparelho vem
repousar sobre as árvores do lindo parque do Barão de Rotschild. Era necessário
desmontar tudo, com grande cuidado, afim de que não se danificasse, pois
pretendia reparar minha embarcação para concorrer de novo ao prêmio Deutsch.
*
* *
Nesse dia tinha
despertado às três horas da manhã para, pessoalmente, verificar o estado do meu
aparelho e acompanhar a fabricação do hidrogênio, pois, de um dia para outro, o
balão perdia uns vinte metros cúbicos. Sempre segui a divisa: "Quem quer
vai, quem não quer manda"... Já o dia ia findando e eu não abandonava o
meu balão um só instante, a despeito da fome terrível.
De repente, - deliciosa
surpresa! - apareceu-me um criado com uma cesta cujo aspecto
traía iniludivelmente o seu conteúdo; pensei que algum amigo se tivesse lembrado
de mim enquanto almoçava... Abria-a e dentro encontrei uma carta: era da senhora
Princesa D. Isabel, vizinha do Barão Rotschild, que me dizia saber que eu
estava trabalhando até aquela hora, sem refeição nenhuma, e me enviava um
pequeno lunch; pensava também nas angústias que deveria sofrer minha mãe,
que de longe seguia as minhas peripécias, e declarava ter à minha disposição
uma pequena medalha, esperando daria conforto a minha mãe saber que eu a traria
comigo em minhas perigosas ascensões.
Essa medalha nunca
mais me abandonou.
*
* *
Sobre essas
experiências, publicou "L'Illustration" as seguintes notas:
"La première du
mois de Juillet 1901 a été signalée par deux événements qui pourralent bien
marquer deux grandes dates dans l'Histoire de l'humanité, et qui semblent dans
tous les cas promettre qu'en matière de conquétes scientifiques le vingtième
siècle ne sera pas inférieur au dix-neuvième.
A dix jours
d'intervalle, le sous-marin "Gustave-Zédé" a fait ses preuves en
Corse, et le ballon dirigeable Santos-Dumont a fait les siennes à Paris meme.
Dans deux numéros consecutifs, l'Illustraction a pu consacrer la gravure de
première page à ces deux exploits - les premiers - acomplis dans le
domaine de la navigation aérienne.
Le ballon de M.
Santos-Dumont, qui vient d'effectuer deux jours de suite le voyage aller et
retour de St. Cloud à la tour Eiffel est le cinquième aérostat avec lequel cet
ingénieur de vingt-huit ans a tenté de resoudre le problème de la
dirigeabilité.
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Les positions respectives de ces divers agrès on été
déterminées avec beaucoup de soin et après de longs tâtonnements, afin qu'une
fois tout en place et en tenant compte du poids mème de l'aéronaute, la quille
soit horizontabilité et une égale tension des cordelettes de suspension. Cette
condition explique pourquoi le siège de l'aéronaute se trouve éloigné du
moteur.
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Enfin,
c'est par le déplacement du guide-rope, suspendu sous la quille et pesant
38 kilogrammes, qu'on obtient l'inclinaison voulue du système les mouvements
d'ascension ou de descente.
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A 7 heures,
le Santos-Dumont nº 5 doublait la tour Eiffel en la contournant un peu au-dessus
de la deuxième plate forme. Ce virage est
executé avec précision remarquable.
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Attendons-nous à le voir un de ces jours planer sur
Paris et descendre, par example, sur la terrasse de l'Automobile Club, place de
la Concorde."
*
* *
Reposto o balão e
estado de funcionar, revistas e consertadas todas as suas peças, cheio de novo,
fiz experiências preliminares. Convocada novamente a Comissão do Aero Club,
parti para a Torre Eiffel que circunaveguei de novo; mas, ao voltar,
desarranjou-se-me a máquina nas alturas do Trocadero. Manobro para escolher um
bom lugar para descer. Supunha ter sido feliz em minhas manobras e esperava
descer em uma rua, quando ouço um grande estrondo, grande como o de um tiro de
canhão; era a ponta do balão que, na descida, que foi rápida, tocara o telhado
de uma casa.
Um saco de papel cheio
de ar, batido de encontro a uma parede, arrebenta-se, produzindo um grande
ruído; pois bem, o meu balão, saco que não era pequeno, fez um barulho assim,
mas... em ponto grande. Ficou completamente destruído.
Não se encontrava
pedaço maior do que um guardanapo!
Salvei-me por
verdadeiro milagre, pois fiquei dependurado por algumas cordas, que faziam
parte do balão, em posição incomoda e perigosa, de que me vieram tirar os
bombeiros de Paris.
Os amigos e jornalistas me aconselharam a
ficar nisso e não continuar em minhas ascensões, da última das quais me salvara
por verdadeiro milagre. O conselho era bom, mas eu não pude resistir à tentação
de continuar; não sabia contrariar o meu temperamento de sportsman.
Convoquei-os para nova
experiência daí a três semanas. Eu sabia dos elementos com que podia contar; já
conhecia, em Paris, umas vinte casas especialistas, cada qual, de um trabalho,
e já tinha conquistado a simpatia dos contramestres e operários de quem podia
esperar a maior dedicação e serviço rápido.
*
* *
Iniciei a construção
de um novo balão e novo motor, este um pouco mais forte, aquele um pouco maior.
Três semanas, contadas
dia por dia, após o último desastre, meu aparelho, o n.º 6, estava pronto.
O tempo, porém,
continuava mau. Em 19 de Outubro (1901), à tarde, pois a manhã foi chuvosa,
subi de novo, contornei a Torre, a uma altura de 250 metros, sobre uma enorme
multidão que aí estacionava à minha espera, e passei por Autenil, sobre o
hipódromo do mesmo nome, que ficava em meu caminho.
Havia corridas; a
minha passagem, tanto na ida como na volta, despertou um delírio de aplausos;
ouvi a gritaria e vi lenços e chapéus arrojados no ar; eu distava da terra
apenas de 50 a 100 metros...
Da minha saída ao
momento em que passei do zênite do ponto de partida, decorreram 29 minutos e 30
segundos.
Com a velocidade que
levava, passei a linha da chegada - como fazem os yachts, os barcos a petróleo,
os cavalos de corridas, etc. - , diminuí a força do motor e virei de bordo;
então, voltando, e com menos velocidade, manobrei para tocar a terra, o que fiz
em 31 minutos após minha partida.
Pois bem, alguns
senhores quiseram que fosse esse o tempo oficial!
Grandes polêmicas.
Tive comigo toda a
imprensa e o povo de Paris e também Son Altesse Imperiale le Prince Roland
Bonaparte, presidente da Comissão Científica que ia julgar o assunto.
O voto me foi
favorável.
*
* *
Não se tinham passado
dois anos e eram ganhos os cem mil francos do prêmio Deutsch, que, acrescidos
aos juros e mais prêmios pequenos, perfazia o total de 129.000 francos, que
foram assim destinados: 50.000 francos aos meus mecânicos e operários das
usinas que me tinham auxiliado; e o restante a mais de 3.950 pobres de Paris,
distribuídos, a pedido meu, pelo Sr. Lepine, Chefe de Polícia, em donativos de
menos de 20 francos.
Por
essa ocasião, o saudoso Sr. Campos Sales, então Presidente da República, enviou-me
uma medalha de ouro e, logo, em seguida, fui agradavelmente surpreendido com
o recebimento com o prêmio de 100:000$000, que me foi oferecido pelo Congresso
Nacional; além destas, duas outras medalhas recebi: uma do Instituto de França,
outra do Aero Club de França.
*
* *
Depois do meu n.º 6,
construí vários outros balões, que não me deram os resultados desejados. Há um
ditado que ensina "o gênio é uma grande paciência"; sem pretender ser gênio, teimei em ser um
grande paciente. As invenções são, sobretudo, o resultado de um trabalho
teimoso, em que não deve haver lugar para o esmorecimento.
Consegui, afinal,
construir o meu n.º 9; com ele pude alcançar alguma coisa; fiz dezenas de
passeios sobre Paris, fui várias vezes às corridas, dele me apeei à porta de
minha casa, na Avenida dos Campos Elíseos, e nele, quase todas as noites, fiz
corso sobre o Bois de Boulogne.
A minha presença com
ele na revista militar de Longchamps, em 14 de julho de 1903, causou um imenso
sucesso.
Foi o mais popular de
todos os meus... filhos, só mais tarde suplantado pela minúscula
"Demoiselle".
*
* *
Depois... eu ouvia
chalaças deste gênero: "O Sr. não faz nada?" "Está sempre
fechado em seu quarto, a dormir!"
Nesse ínterim vim ao
Brasil; no Rio de Janeiro, em São Paulo, Minas e Estados do Norte, por onde
passei, me acolheram os meus patrícios com as mais cativantes festas de que
jamais me esquecerei e que tanto me penhoraram.
*
* *
Durante as minhas
horas de intensa alegria e felizes sucessos, só uma saudade me fazia triste:
era a ausência de meu pai. Ele que me dera tão bons conselhos e os meios de
realizar o meu sonho, não mais estava neste mundo para ver que eu "me
tinha feito um homem".
É costume oriental
fazer recair sobre os pais todo o mérito, toda a glória, que um homem conquiste
na vida. Esta maneira de ver pode ser criticada ou desaprovada, porém, no meu
caso, ela seria muito justa, pois, tudo devo a meu pai: conselhos, exemplos de
trabalho, de audácia, de economia, sobriedade e os meios com os quais pude
realizar as minhas invenções.
Tudo lhe devo, desde
os exemplos.
Nascido na Cidade de
Diamantina, o Dr. Henrique Dumont, formou-se, em Engenharia, pela Escola
Central de Paris e, depois de trabalhar vários anos na E. F. Central (foi em
uma casita situada na garganta João Aires que eu nasci) dedicou-se à lavoura no
Estado do Rio. Vendo que aí nada de grande podia fazer, partiu com minha mãe e
oito filhos, então todos crianças, para Ribeirão Preto, que se achava a três
dias de viagem a cavalo da ponta dos trilhos da Mogiana.
Explorara, antes, o
interior do Estado de São Paulo e ficou maravilhado com as matas de Ribeirão
Preto.
*
* *
Neste país
essencialmente agrícola, ele foi o protótipo do fazendeiro audacioso, e, com
uma energia tão grande como a sua confiança no futuro, desbravou sertões e
cultivou o solo, aí trabalhou durante dez anos, ao cabo dos quais, por ter sido
acometido de uma paralisia, vendeu aquelas "matas", então
transformadas em cerca de 5.000.000 de cafeeiros, servidos por uma estrada de
ferro particular, por ele construída e que os liga a Ribeirão Preto.
Hoje, para que não
morresse na memória dos homens a lembrança do valor desse audacioso, os
ingleses, em significativa homenagem, conservaram em seu nome na companhia
proprietária atual daquelas terras.
Em 1905, a Dumont
Coffee Company colheu, naquele cafezal, 498 mil arrobas; em 1911, obteve uma
renda bruta de 3.883 contos de réis.
Um de nossos grandes
estadistas, depois de uma visita que fizera a meu pai, escreveu, numa impressão
de viagem, referindo-se àquela fazenda: "Ali tudo é grande, tudo é imenso;
só há uma coisa modesta; a casa onde mora o fundador de tudo aquilo".
*
* *
Dormi três anos e no
mês de julho de 1906 apresentei-me no campo de Bagatelle com o meu primeiro
aeroplano.
Perguntar-me-á
o leitor porque não o construí mais cedo, ao mesmo tempo que os meus dirigíveis.
É que o inventor, como a natureza de Linneu, não faz saltos; progride de manso,
evolui. Comecei por fazer-me bom piloto de balão livre e só depois ataquei
o problema de sua dirigibilidade. Fiz-me bom aeronauta no manejo dos meus
dirigíveis; durante muitos anos, estudei a fundo o motor a petróleo e só quando
verifiquei que o seu estado de perfeição era bastante para fazer voar, ataquei
o problema do mais pesado que o ar.
A questão do aeroplano
estava, havia já alguns anos, na ordem do dia; eu, porém, nunca tomava parte
nas discussões, porque sempre acreditei que o inventor deve trabalhar em
silêncio; as opiniões estranhas nunca produzem nada de bom.
*
* *
Abandonei meus balões
e meu hangar no parque do Aero Club.
Em completo silêncio
trabalhei três anos, até que, em fins de julho, após uma assembléia do Aero
Club, convidei meus amigos a assistirem minhas experiências, no dia seguinte.
Foi um espanto geral.
Todo mundo queria saber como era o aparelho.
A suas dimensões eram:
comprimento, 10 metros; envergadura, 12 metros; superfície total, 80 metros
quadrados; peso, 160 quilos; motor, 24 HP.
Era uma aparelho
grande e biplano e assim o fiz, apenas, a fim de reunir maiores facilidades
para voar, pois sempre preferi os aparelhos pequenos, tanto que me esforcei
para inventa-los, o que consegui com o minúsculo "Demoiselle", o
aeroplano ideal para o amador.
Continuando na minha
idéia de evolução, dependurei o meu aeroplano em meu último balão, o n.º 14;
por esta razão, batizaram aquele com o nome de 14-bis. Com esse conjunto
híbrido, fiz várias experiências em Bagatelle, habituando-me, dia a dia, com o
governo do aeroplano, e só quando me senti senhor das manobras é que me desfiz
do balão.
É verdade que sempre
fui de uma felicidade, de uma sorte inaudita em todos os meus empreendimentos
aéreos; tive uma boa estrela.
Atribuo, também, essa sorte à minha prudência.
Nesta ordem de idéias;
o primeiro problema que tive a resolver foi a possibilidade de levar-se um
motor à explosão ao lado de um balão cheio de hidrogênio. Uma noite, tendo
suspenso a alguns metros de altura o motor no meu n.º 1, pu-lo em marcha;
- estava com o seu silencioso - notei que as fagulhas que partiam com os gases
queimados iam em todas as direções e poderiam atingir o balão.
Veio-me a idéia de
suprimir o silencioso e curvar os tubos de escapamento para o chão. Passei da
maior tristeza à maior alegria, pois, quanto maiores eram as fagulhas, com
maior força eram jogadas para a terra e, por conseguinte, para longe do balão.
Estava, pois, resolvido este problema: o motor não poria fogo ao balão.
Só o que precisava
impedir era que, em caso de escapamento dos gases do balão pelas válvulas,
estes não viessem alcançar o motor, Para impedir isto, eu sempre coloquei as
válvulas bem atrás, à popa do balão, por conseguinte, longe do motor.
O ponto fraco nos
aeroplanos era o leme; dei, pois, sempre a maior atenção a este órgão e seus
comandos, para os quais sempre empreguei os cabos de aço de 1ª qualidade que
são usados pelos relojoeiros nos relógios de igreja.
Lutei, a princípio,
com as maiores dificuldades para conseguir a completa obediência do aeroplano;
neste meu primeiro aparelho coloquei o leme à frente, pois era crença geral,
nessa época, a necessidade de assim fazer. A razão que se dava era que,
colocado ele atrás, seria preciso forçar para baixo a popa do aparelho, a fim
de que ele pudesse subir; não deixava de haver uma certa verdade nisso, mas as
dificuldades de direção foram tão grandes que tivemos de abandonar essa
disposição do leme. Era o mesmo que tentar arremessar uma flecha com a cauda
para a frente.
*
* *
Em meu primeiro vôo,
após 60 metros, perdi a direção e caí.
Este meu primeiro vôo,
de 60 metros, foi posto em dúvida por alguns, que o quiseram considerar apenas
um salto. Eu, porém, no íntimo, estava convencido de que voara e, se me não
mantive mais tempo no ar, não foi culpa de minha máquina, mas, exclusivamente
minha, que perdi a direção.
Com grande velocidade,
consertei rapidamente o aparelho, fiz-lhe algumas pequenas modificações e,
durante algumas semanas, "rodei" em Bagatelle a fim de me aperfeiçoar
no seu difícil governo.
Logo depois, em 23 de
outubro, perante a Comissão Científica do Aero Club e de grande multidão, fiz o
célebre vôo de 250 metros, que confirmou inteiramente a possibilidade de um
homem voar.
Esta última
experiência e a de 12 de julho de 1901, me proporcionaram os dois momentos mais
felizes de toda a minha vida.
*
* *
Creio interessante
citar a opinião de algumas revistas sobre esses meus vôos, por elas amplamente
apreciados. Não o faço por não ter à mão, pois nunca me preocupei em colecionar
artigos que se referiam a mim. Dentre todas, porém, lembro-me que
"L'Aerophile", a mais importante e antiga das revistas de
Aeronáutica, considerou-os um acontecimento histórico.
"L'Illustration"
e "La Nature", cujos números aqui encontrei, assim os consignaram:
"L'ILLUSTRATION"
SAMEDI 27 OCTOBRE 1906
M.Santos-Dumont, dèja
vainqueur du prix Deutsch, de 100.000 fcs. grace à son dirigeable, vient de
remporter aussi, mardi dernier, la Coupe Archdeacon, réservée aux appareils
d'aviation. Monté sur cet appareil original, M. Santos-Dumont, a parcouru,
l'autre matin, d'un breau vol, une distance de 60 mètres. La photographie que
nous donnons ici est, croyons-nous, la seule qui ait été authentiquement prise
au cours de cette passionnante expérience; elle montre que l'aéroplane ne s'est
pas elevé à une bien grande hauteur audessus du sol: 2 mètres environ. La,
d'ailleurs, n'était pas la question, et le grand intérêt de l'experience était
de dèmontrer que l'on peut, sans le concours d'un support plus léger que
l'air, réaliser le vol plane. Cette démonstration
est aujourd'hui faite.
Eis aqui parte do
artigo que publicou "L'Illustration" e, na página em frente, a
fotografia que o acompanhava.
"La Nature" disse:
"La journée du 13
Septembre 1906 sera désormais historique, car, pour la prémiere fois, un homme
s'est elevé dans l'air par ses propres moyens, Santos-Dumont, sans cesser ses
travaux sur le "plus léger que l'air" fait aussi de três importantes
études sur le "plus lourd que l'air", et c'est lui qui est parvenu à
"voler" en ce jour mémorable, devant un public nombreux.
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
... il rest un
fait acquis, c'est qu'il s'est éléve dans l'espace, sans ballon, et c'est une
victoire importante pour les partisans du "plus lourd que
l'air".
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
C'est donc
maintenant (23 Octobre) la victoire complète du "plus lourd que l'air;
Santos-Dumont a démontré de façon indiscutable qu'il est possible de s'élever
du sol par ses propres moyens et de se maintenir dans l'air."
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
*
* *
Um público numeroso
assistiu aos primeiros vôos feitos por um homem, como tais, reconhecidos por
todos os jornais do mundo inteiro. Basta abri-los, mesmo os dos Estados Unidos,
para se constatar essa opinião geral.
Podia citar todos os
jornais e revistas do mundo, todos foram, então, unânimes em glorificar "esse
minuto memorável na história da navegação aérea".
*
* *
No ano seguinte o
aeroplano Farman fez vôos que se tornaram célebres; foi esse inventor-aviador
que primeiro conseguiu um vôo de ida e volta. Depois dele, veio Bleriot, e só dois
anos mais tarde é que os irmãos Wright fazem os seus vôos. É verdade que
eles dizem ter feito outros, porém às escondidas.
Eu não quero tirar em
nada o mérito dos irmãos Wright, por quem tenho a maior admiração; mas é
inegável que, só depois de nós, se apresentaram eles com um aparelho superior
aos nossos, dizendo que era cópia de um que tinham construído antes dos nossos.
Logo depois dos irmãos
Wright, aparece Levavassor com o aeroplano "Antoinette", superior a
tudo quanto, então, existia; Levavassor havia já 20 anos que trabalhava em
resolver o problema do vôo; poderia, pois, dizer que o seu aparelho era cópia
de outro construído muitos anos antes. Mas não o fez.
O que diriam Edison,
Graham Bell ou Marconi se, depois que apresentaram em público a lâmpada
elétrica, o telefone e o telégrafo sem fios, um outro inventor se apresentasse
com uma melhor lâmpada elétrica, telefone ou aparelho de telefonia sem fios
dizendo que os tinha construído antes deles?!
A quem a humanidade
deve a navegação aérea pelo mais pesado que o ar? Às experiências dos irmãos
Wright, feitas às escondidas (eles são os próprios a dizer que fizeram todo o
possível para que não transpirasse nada dos resultados de suas experiências) e
que estavam tão ignoradas no mundo, que vemos todos qualificarem os meus 250
metros de "minuto memorável na história da aviação", ou é aos Farman,
Bleriot e a mim que fizemos todas as nossas demonstrações diante de comissões
científicas e em plena luz do sol?
*
* *
Nessa época, os
aparelhos eram grandes, enormes, com pequenos motores, voavam devagar, uns 60
quilômetros por hora ou pouco mais. Mandei, então, construir um motor especial
de minha invenção, desenhado especialmente para um aeroplano minúsculo.
Este motor possuía
dois cilindros opostos, o que trás a inconveniência da dificuldade de lubrificação,
mas, também, as vantagens consideráveis de um peso pequeno e um perfeito
equilíbrio, não ultrapassado por qualquer outro motor.
Pesava 40 quilos e
desenvolvia 35 HP.
Nunca se conseguiu um
motor fixo, resfriado a água, e de peso insignificante, somente igualado, mais
tarde, pelos motores rotativos, aos quais, entretanto, fui sempre contrário,
desde o seu aparecimento. Hoje, 10 anos passados, parece-me, confirma-se esta
minha apreciação, pois o motor fixo tem tido uma aceitação geral.
A "Demoiselle"
media 10 metros quadrados de superfície de asas; era 8 vezes menor que o
14-bis! Com ela, durante um ano, fiz vôos todas as tardes e fui, mesmo, em
certa ocasião, visitar um amigo em seu Castelo. Como era um aeroplano pequenino
e transparente, deram-lhe o nome de "Libelule" ou
"Demoiselle".
Este foi, de todos os
meus aparelhos, o mais fácil de conduzir, e o que conseguiu maior popularidade.
Com
ele obtive a "Carta de piloto" de monoplanos. Fiquei, pois, possuidor
de todas as cartas da Federação Aeronáutica Internacional: - Piloto de balão
livre, piloto de dirigível, piloto de biplano e piloto de monoplano.
Durante muitos anos,
somente eu possuía todas essas cartas, e não sei mesmo se há já alguém que as
possua.
Fui pois o único homem
a ter verdadeiramente direito ao título de aeronauta, pois conduzia todos
os aparelhos aéreos.
Anunciei a meus amigos
a intenção de pôr fim à minha carreira de aeronauta, - tive a aprovação de
todos.
*
* *
Tenho acompanhado, com o mais vivo interesse
e admiração, o progresso fantástico da Aeronáutica. Bleriot atravessa a Mancha
e obtém um sucesso digno de sua audácia. Os circuitos europeus se multiplicam;
primeiro, de cidade a cidade; depois, percursos que abrangem várias províncias;
depois, o "raid" de França à Inglaterra; depois, o "tour"
da Europa.
Devo citar também o
primeiro "meeting" de Reins que marcou, pode-se dizer, a entrada do
aeroplano no domínio comercial.
*
* *
Entramos na época da
vulgarização da aviação e, nessa empresa, brilha sobre todos, o nome de Garros.
Esse rapaz personificou a audácia; até então, só se voava em dias calmos, sem
vento. Garros foi o primeiro a voar em plena tempestade. Logo depois,
atravessou o Mediterrâneo.
O estado atual da
aeronáutica todos nós o conhecemos, basta abrir os olhos e ler o que ela faz na
Europa; e é com enternecido contentamento que eu acompanho o domínio dos ares
pelo homem:
É meu sonho que se
realiza.
O QUE NÓS VEREMOS
Estava
na Europa em 1915, quando recebi da Diretoria do Aero Club da América um convite
para tomar parte no Segundo Congresso Científico Pan-Americano, onde se fizeram
representar, pelos seus filhos mais ilustres, todos os países do nosso continente.
Aproveitei a
oportunidade, que tão especialmente se me oferecia, para, mais uma vez,
exprimir a minha inteira confiança no futuro da navegação aérea.
Escolhi, para isso,
este tema:
As condições
topográficas do continente sul-americano, tornando economicamente impossível a
construção de estradas de ferro e, portanto, o transporte e comunicação
adequados, têm retardado a estreita união, tão desejável, entre os estados do
hemisfério ocidental. Cidades importantes, situadas em grandes altitudes, ficam
isoladas. Algumas, em verdade, parecem estar, praticamente, fora do alcance da
civilização moderna.
A longa e penosa
viagem, o tempo que nela se gasta, em vapor, vai demorando a aliança íntima dos
países sul-americanos com os Estados Unidos, para quem parecem inacessíveis,
por tão remotos.
. . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um largo tempo de
percurso nos separa, impedindo o desenvolvimento de proveitosas relações
comerciais, reciprocamente interessantes, sobretudo agora que a guerra
anormaliza o mercado mundial.
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quem sabe quando uma
potência européia há de ameaçar um estado americano? Quem poderá dizer se na
presente guerra não veremos uma potência européia vir apoderar-se de território
sul-americano? A guerra entre os Estados Unidos e um país da Europa é
impossível? Uma aliança estreita entre a América do Norte e a do Sul redundaria
em uma força formidável.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
Eu vos falei do
comércio e da dificuldade do seu desenvolvimento, das facilidades de transporte
e comunicações e do incremento das relações amistosas. Estou convencido que os
obstáculos de tempo e distância serão removidos. As cidades exiladas da América
do Sul entrarão em contato direto com o mundo de hoje. Os países distantes de
encontrarão, apesar das barreiras de montanhas, rios e florestas. Os Estados
Unidos e os países sul-americanos, se conhecerão tão bem como a Inglaterra e a
França se conhecem. A distância entre Nova York as Rio de Janeiro, que é agora
de mais de vinte dias de viagem por mar, será reduzida a 2 ou 3 dias. Anulados
o tempo e a distância, as relações comerciais, por tanto tempo retardadas, se
desenvolverão espontaneamente. Teremos facilidades para as comunicações
rápidas. Chegaremos a um contato mais íntimo. Seremos mais fortes, nos nossos
laços de compreensão e amizade.
Tudo isso, Srs., será realizado pelo
aeroplano.
Não me parece muito
longe o tempo em que se estabeleça o serviço de aeroplanos entre as cidades dos
Estados Unidos e as capitais sul-americanas. Com um serviço postal em aeroplano
e a comunicação entre os dois continentes se reduzirá de vinte para dois ou
três dias. O transporte de passageiros entre Nova York e os mais longínquos
pontos da América do Sul não é impossível. Creio, Srs., que o aeroplano, com
pequenos aperfeiçoamentos, resolverá o problema por que tanto temos lutado.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
A possibilidade da
navegação aérea entre os Estados Unidos e a América do Sul, é mera especulação
fantasiosa?
Intimamente creio que
a navegação aérea será utilizada no transporte de correspondência e passageiros
entre os dois continentes. Algum de vós demonstrará incredulidade e rirá desta
predição.
Sem embargo, faz 12
anos que eu disse que as máquinas aéreas tomariam parte nas futuras guerras e
todos, incrédulos, sorriram.
Em 14 de julho de
1903, voei sobre a revista militar de Longchamps. Nela tomavam parte 50.000
soldados e em seus arredores se acotovelavam 200.000 espectadores. Foi a
primeira vez que a navegação aérea figurou em uma demonstração militar. Naquela
época, predisse que a guerra aérea seria um dos aspectos mais interessantes das
futuras campanhas militares. Minha predição foi ridicularizada por alguns
militares; outros, entretanto, houve que, desde logo, alcançaram as futuras e
imensas utilidades da navegação aérea. Dentre estes, é, para mim, grato
recordar o nome do General André, então Ministro da Guerra da França, de quem
recebi a seguinte carta:
MINISTÈRE DE LA GUERRE
Cabinet du Ministre
Paris, le 19 Juillet 1903
Monsieur,
Au cours de la revue du 14 Juillet, j'avais remarqué
et admiré la facilité et la sureté avec les-quelles évoluait le ballon que vous
dirigiez. Il
était impossible de ne pas constater les progrès dont vouz avez doté la
navigation aérienne. Il semble que, grace à vous, elle doive se prèter
désormais à des applications pratiques, surtout au poin de vue militaire.
J'estime qu' à cet
égard elle peut rendre des services très sèrieux en temps de guerre...
GENERAL ANDRÉ.
Consideremos,
entretanto, os acontecimentos desde aquela época. Consideremos o valioso
trabalho que o aeroplano tem produzido na atual guerra.
A aviação revolucionou
a arte da guerra.
A cavalaria, que teve
grande importância em momentos valiosos, deixou de existir.
.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
No meu livro
"Dans l'Air", publicado em 1904, eu dizia:
"...
Je ne puis toutefois abandonner ce suject sans faire allusion à un avantage maritìme
unique de l'aéronef: je veux dire la faculté que possède le navigateur aérien
d'apercevoir les corps en mouvement sous la surface des eaux. Croisant à bout
de guide-rope sur la mer et se maintenant à la hauteur qui lui parait
convenable, l'aéronef pròmene librement en tous sans le navigateur. Cependant,
le sous-marin qui poursuit sa course furtive sous les vagues est parfaitement
visible pour lui, quand, du pont d'un navire de guerre, il reste absolument
invisible. C'est un fait d'observation et qui tient à certaines lois de
l'optique. Ainsi, chose vraiment curieuse, l'aéronef du xxo siècle
peut devenir, à son dèbut, le grand ennemi de cette autre merveille du xxo
siècle, le sous-marin! Car tandis que le sous-marin est ímpuíssant contre
l'aéronef, celui-ci, animé d'une vitesse double, peut croiser à sa recherche,
suivre tous ses mouvements, les signaler aux navires qu'il menace. Et enfin,
rien n'empêche l'aéronef de détruire le sous-marin en dirigeant contre luí des
longs projectiles chargés de dynamite et capables de pénétrer sous les vagues à
des profundeurs où l'artillerie ne peut atteindre du pont d'un cuírassè."
.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Vemos que hoje se
realiza, inteiramente, essa previsão, feita há doze anos, quando a Aeronáutica
acabava de nascer.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
O aeroplano provou a
sua importância suprema nos reconhecimentos.
De seu bordo, podem-se
locar as trincheiras inimigas, observar os seus movimentos, o transporte de
tropas, munições e canhões. De bordo do aeroplano, por meio de telegrafia sem
fios, ou de sinais, pode-se dirigir o fogo das forças. Por meio de informações
transmitidas pelo telégrafo sem fios, grandes peças de artilharia podem
precisar seus tiros contra as trincheiras e baterias inimigas......... O avião
é de maior valor na defesa das costas do que os cruzadores.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
A aviação
demonstrou-se a mais eficaz arma de guerra tanto na ofensiva como na defensiva.
Desde o início da guerra, os aperfeiçoamentos do aeroplano têm sido
maravilhosos.
Quem, há cinco anos
atrás, acreditaria na utilização de aeroplanos para atacar forças inimigas? Que
os projéteis de canhões poderiam ser lançados com efeitos mortíferos de alturas
inacessíveis ao inimigo?
Desde o começo da
guerra, os aparelhos têm melhorado. Têm sido aumentados em dimensões e alguns,
hoje, são feitos exclusivamente de aço. Os motores igualmente se têm aperfeiçoado.
O mais espantoso acontecimento foi o desenvolvimento dos canhões para
aeroplanos. A princípio, o recuo dos canhões, ao atirar, constituía a maior
dificuldade relativa aos ataques aéreos. Os constantes e repetidos choques do
contra-golpe do disparo mesmo de pequenos canhões, logo bambeavam as frágeis
estruturas dos aeroplanos assim utilizados, pondo-os fora de uso. Este
inconveniente já está sanado. Novos canhões foram inventados, que não produzem
contra-choque. Consistem em um tubo do qual são expelidos dois projéteis, por
uma única explosão. No momento de atirar, um dos projéteis, uma mortífera bala
de aço, desce velozmente em direção ao inimigo, e o outro, de areia, é
descarregado no sentido contrário; dessas duas descargas simultâneas resulta a
ausência de contra-choque.
Imaginai o poder deste
terrível fogo lançado de um aeroplano!
Se o aeroplano, Srs.,
se tem mostrado tão útil na guerra, quanto mais não o deverá ser em tempos de
paz?
Há menos de dez anos o
meu aparelho era considerado uma maravilha. Nele havia lugar para apenas uma
pessoa; eu me utilizei de uma motor de menos de 20 hp. A princípio apenas
consegui voar alguns meros, e pouco depois alguns quilômetros. Meu recorde foi
de 20 quilômetros. Eu carregava gasolina suficiente para um vôo de 15 minutos.
Naquela época o aeroplano era considerado um brinquedo. Ninguém acreditava que
a aviação chegaria ao progresso de hoje. Nesses tempos voávamos apenas quando a
atmosfera estava tranqüila, geralmente ao nascer do sol ou ao seu pôr.
Acreditava-se que um
aeroplano só poderia voar quando não houvesse vento. Hoje fabricam-se aparelhos
que podem transportar 30 passageiros, capazes de viajar nos ares durante horas,
de percorrerem cerca de mil milhas sem tocar em terra, movido por motores num
total de mais de mil cavalos. Um aeroplano já atingiu a altura de 26.200 pés, e
já se manteve no ar durante 24 horas e 12 minutos, e entre o levantar e o pôr
do sol, percorreram-se, em aeroplano, 2.100 quilômetros. Não tememos mais
ventos nem temporais; o aparelho moderno de voar atreve-se em qualquer céu e
atravessa tempestades de qualquer velocidade, e pode, ainda, elevar-se acima
das regiões tempestuosas. Ainda agora o aeroplano está em sua infância. No
espaço de dez anos ele progrediu mais rapidamente que o automóvel.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
Por meio do aeroplano,
estamos hoje habilitados a viajar com velocidade superior a 130 milhas por
hora. Para fins comerciais e comunicações internacionais, tanto as estradas de
ferro como os automóveis, chegaram a um ponto em que a sua utilidade termina.
Montanhas, florestas, rios e mares, entravam o seu progresso. Mar o ar fornece
um caminho livre e rápido para o aeroplano; para ele não há empecilhos. A
atmosfera é o nosso oceano e temos portos em toda a parte!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
Eu, que tenho algo de
sonhador, nunca imaginei o que tive ocasião de observar quando visitei uma
enorme fábrica nos Estados Unidos. Vi milhares de hábeis mecânicos ocupados na
construção de aeroplanos, produzidos diariamente em número de 12 a 18.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
Melhorado pelas
necessidades e exigências da guerra, o aeroplano - desviado dos fins
destruidores - provará o seu incalculável valor como instrumento dos objetivos
úteis da raça humana. No momento atual é bem possível que qualquer dos atuais
grandes aparelhos possa fazer viagens de Nova York a Valparaíso, ou de
Washington ao Rio de Janeiro. Um ponto de abastecimento de combustível poderia
ser facilmente instalado em cada 600 milhas de percurso.
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A principal
dificuldade para a navegação aérea está no progresso precário dos motores.
Francamente, o motor atual ainda não atingiu o que deveria ser. O aeroplano em
si desenvolveu-se mais rapidamente que o motor.
Penso, entretanto,
que, em breve, o motor do aeroplano se aperfeiçoará a tal ponto que não terá maiores
imperfeições que os dos melhores e mais perfeitos automóveis, hoje fabricados.
Atualmente, um motor
de aeroplano precisa ser relativamente leve e, ao mesmo tempo, resistente a
grande trabalho contínuo.
Já o aço tem sido
melhorado e tornado mais resistente por processos especiais; ninguém sabe até
que ponto poderíamos continuar a melhora-lo ainda. Se inventores como Edison,
Tesla, Henry Wise Wood, Spery, e Curtis, etc., dedicassem sua energia a este
assunto, estou convencido que em pouco tempo teríamos um motor perfeitamente
satisfatório.
Outra dificuldade, que
se apresenta à navegação aérea, é a de localizar-se o aeroplano. É agora
impossível o uso do sextante nos ares.
Creio que um horizonte
artificial, produzido por meio de um espelho, mantido em posição horizontal por
um giroscópio, resolverá este problema. Com a aplicação do giroscópio os
cientistas têm conseguido resultados maravilhosos. Não somente um aeroplano
pode ser hoje mantido em equilíbrio, por meio de um giroscópio, como um grande
vapor.
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Com o motor
aperfeiçoado e meios precisos de guiar seu curso, o aeroplano está certamente
predestinado a figurar como um dos fatores mais importantes no desenvolvimento
do comércio e na aproximação das nações que se acham separadas pelas grandes
distâncias.
Os países onde
faltaram as boas estradas de rodagem foram, creio, os primeiros a adotar as
estradas de ferro.
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Nos países novos da
América do Sul, não há abundância de estradas de ferro.
Há cidades a tal
altitude que a estrada de ferro dificilmente as poderia atingir, e é a essas
cidades que o aeroplano levará a civilização e o progresso.
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Prevejo uma época em
que se farão carreira regulares de aeroplano, entre cidades sul-americanas, e
também não me surpreenderá se em poucos anos houver linhas de aeroplanos
funcionando entre as cidades dos Estados Unidos e a América do Sul.
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Além das vantagens
provenientes da aproximação dos países sul-americanos entre si e com os Estados
Unidos, há ainda um ponto para o qual chamo vossa atenção. Todos os países
europeus são velhos inimigos e aqui no Novo Mundo devemos ser todos amigos.
Devemos estar habilitados a intimidar qualquer potência européia que pretenda
guerra contra um de nós, não pelos canhões, dos quais temos tão pequeno número,
mas sim pela força da nossa união. No caso de uma guerra contra uma potência
européia nem os Estados Unidos, nem, tampouco, qualquer dos maiores países
sul-americanos, nas atuais condições, poderia convenientemente proteger suas
extensas costas. Seria irrealizável a proteção das costas brasileira e
argentina por uma esquadra.
Unicamente uma
esquadra de grandes aeroplanos, voado a 200 quilômetros por hora, poderia
patrulhar estas longas costas... Aeroplanos de reconhecimento poderão descobrir
a aproximação da esquadra hostil e prevenir os seus navios de guerra para a
luta.
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Estarei eu falando de
coisas irrealizáveis?
Lembrai-vos de que há
dez anos ninguém me tomou a sério. Agora temos ocasião de observar o que tem
feito o aeroplano na Europa, fazendo reconhecimentos, dirigindo batalhas,
movimento de tropas, atacando o inimigo e defendendo as costas.
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A falta de comunicação
nos antigos tempos foi a origem básica de uma Europa desunida e em guerra.
Esperemos que a navegação aérea traga a união permanente e
a amizade entre as Américas.
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* *
Aqui acabo de expor,
em resumo, o que eu disse na minha conferência de Washington, e não tenho razão
de desdizer-me. Pelo contrário, cada vez mais, creio maior e mais próximo o
futuro da navegação aérea. As revistas especiais que recebo falam
constantemente do problema da travessia do Atlântico. Podemos pois dizer que a
idéia está no "ar"; é pois
uma questão talvez de meses e, então, saberemos que um aeroplano partido do
Novo Mundo foi ter ao Velho em talvez um dia! Colombo para fazer a viagem em
sentido inverso levou 70. Saberemos também que 3 ou 4 audaciosos que pilotavam
essa máquina, sofreram muito do frio, da chuva, etc., porém, cara leitor,
tenhamos um pouco de paciência; em breve existirão transatlânticos aéreos com
quartos de dormir, salão e também, o que é muito importante, governados
automaticamente por giroscópios e acionados por vários motores com um grande
excedente de força, para o fim de, em caso de avaria em um deles, serem os
outros bastante poderosos para manter o vôo do aparelho.
Um pouco de paciência!
Quem ler o n.º 1 de
"Je sais tout", 1905, verá que em meu artigo publicado nesse número
eu dizia: "La guerre de l'avenir se fera au moyen de croiseurs aériens
rapides se tenant à d'inaccessibles hauteurs, et bombardant à leur guise les
forts, les armées et les vaisseaux". Este artigo foi ridicularizado por
alguns militares.
Haverá hoje, talvez,
quem ridicularize minhas predições sobre o futuro comercial dos aeroplanos.
Quem viver, porém, verá.
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* *
Esta minha conferência
de Washington foi bem aceita e eu creio que uma das provas está em me ter o
Aero Club da América, logo após ela, convidado para representa-lo no Congresso
Pan-Americano de Aeronáutica, que se ia reunir no Chile. Aceitei esta honra e
parti disposto a tudo encontrar no Chile: tinha conhecido em Paris a sociedade
chilena e a sabia a mais amável do mundo; tinha ouvido falar nas belezas
naturais do Chile, ia pois vê-las. Ia ver os Andes, ia ver muita coisa, tudo,
menos aeroplanos. Era a minha expectativa. Faça, pois, o leitor idéia do meu
espanto quando logo ao meu desembarque e em uma festa que organizaram em minha
homenagem, voaram mais de 12 aparelhos e os mesmos aparelhos com aviadores
diferentes!! Chegando a Santiago fui visitar o campo de aviação do exército,
esplendidamente bem escolhido. À minha vista, os oficiais aviadores voavam e
pousavam com a maior perícia. O meu espanto ainda foi maior quando me mostraram
as usinas de construção, propriedade do exército e que são contíguas ao campo!!
Parecia que eu estava
de novo nos arrabaldes de Paris!! Um dos oficiais presentes, com a maior
naturalidade do mundo, convida-me para voarmos até Valparaíso, que se achava a
150 quilômetros e, para ir lá, era necessário passar por cima de parte dos
Andes; aceito, e hora e meia depois lá estávamos!
O trabalho, a perícia,
a capacidade e o sucesso destes nossos amigos do Pacífico só é excedida pela
sua modéstia, pois é verdade, não perderam momento de me pedir conselhos, ora
sobre hidroaviões; quando nas usinas, sobre material, madeiras nacionais,
possibilidades de aperfeiçoamentos, etc. Querem aperfeiçoar-se e deram-me a
honra de acreditar-me um especialista na arte.
De lá passei à
Argentina, onde de novo encontrei um grande entusiasmo pela aeronáutica e
também um grande resultado obtido; aí, porém, a aviação é muito facilitada pela
topografia do país. Não sei o número de pilotos que há ali, mas é o que há de
mais comum encontrar moços da alta sociedade que tem carta de piloto.
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* *
Devo aqui fazer um
elogio aos nossos amigos do Prata que, podendo encontrar facilmente um bom
terreno para aeródromo, a 10 minutos de Buenos Aires, o foram escolher a
algumas horas da cidade, para o terem ótimo,
obrigando os oficiais e discípulos a lá viver e estar de pé ao nascer do sol,
que é a hora das aulas!
Lá vi também um curso
para oficiais observadores!
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* *
Houve, entre os
aeronautas argentinos e chilenos, uma rivalidade esportiva, em que se
empenhavam para ver quem primeiro atravessaria os Andes. Era uma prova difícil,
de cuja realização muitas honras viriam para a aeronáutica sul-americana.
Dois argentinos, os
Srs. Bradley e Zuloaga, conseguiram fazer essa travessia.
Partidário que sempre
fui da aproximação do Brasil e da Argentina e, seguro de interpretar os
sentimentos dos meus patrícios, saudei-os em nome dos brasileiros, por ocasião
da sua chegada a Buenos Aires, vindos do Chile pelo caminho dos ares.
Desse discurso aqui
transcrevo algumas frases em homenagem a esse arrojado empreendimento daqueles
dois filhos do povo amigo:
Bradley, Zuloaga:
Yo os saludo:
Para vosotros, que ayer fruisteis saludados por los
condores, mi saludo es insignificante.
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Hoy, al cruzar los mares, pensamos en Colon...
Mañana, los navegantes del espacio, al cruzar los Andes, recordaran los nombres
de San Martin, Bradley y Zuloaga y diran: "Por aquí, dos veces, los
argentinos passaron los primeros".
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En su "leyenda de los Siglos" Victor Hugo
dice:
"Car, devant un héros, la mort est la moins
forte."
Vosotros habeis probado que el poeta tenia razon.
Bravo!
Yo puedo assegurar os que veinte millones de
corazones brasileños os han aplaudido.
Grande interesse,
pois, no Chile e Argentina; nos Estados Unidos esse interesse chega quase ao delírio.
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* *
Depois de ter visto o
interesse extraordinário que tomam pela aeronáutica todos os países que
percorri, e vendo o desprezo absoluto com que a encaravam entre nós, falou mais
alto que minha timidez o meu patriotismo revoltado e, por duas vezes, me dirigi
ao Sr. Presidente da República.
Há dois anos, fiz ver
a S. Exa. o perigo que havia em não termos, nem no Exército, nem na Marinha, um
corpo de aviadores. Há um ano, escrevi uma crítica e apresentei um exemplo a S.
Exa.
Nestas notas, eu assim
dizia: Leio que o governo vai, de novo, tomar posse do Campo dos Afonsos, onde
será instalada a Escola Central de Aviação do Exército, e que a Marinha vai
transportar para a Ilha do Governador a sua escola.
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Primeiro trataremos do
Campo dos Afonsos. Há dois anos o Exército, creio que reconhecendo a pouca
praticabilidade desse Campo, o abandonou........ O Aero Club ali instalou o seu
Campo de Aviação. Convidado pela diretoria desse clube, há anos, para visitar e
dar a minha opinião sobre o dito Campo, disse que o achava mais do que ruim:
achava-o péssimo. Aconselhei que
procurassem uma grande planície ou, melhor ainda seria, que o Club se ocupasse
primeiro da aviação náutica, já que nos deu a natureza um aeródromo náutico
único no mundo. O Aero Club não seguiu os meus conselhos.
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É grande a minha
tristeza ao ler que o Governo vai de novo tomar posse desse terreno para ali
instalar o campo central de aeronáutica!!! Os franceses tiveram a sorte de
encontrar bons campos perto de Paris, porém, as vantagens de um campo ótimo são tão grandes que eles foram
instalar os seus novos campos quase no extremo da França, em Pau, onde
encontraram imensas "landes". Eu estou certo que, ao sul, nós devemos
possuir planícies iguais às de Pau, onde se poderá trabalhar sem perigo, nem
para o futuro aviador, nem para o aeroplano e onde o ensino será infinitamente
mais rápido, graças a poder-se empregar "Pingouins" para o ensino dos
principiantes.
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Um principiante, que
se familiarize com um desses aparelhos, necessitará de poucas lições para voar.
Nos Estados Unidos as escolas de aviação estão muito longe da capital; estão
onde se encontram bons campos.
Quanto à Escola naval,
eu creio que ela não está mal na Ilha das Enxadas.
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A minha opinião é,
pois: para o Exército, a escolha de um vasto campo no sul do Brasil, ou mesmo o
de Santa Cruz. Para a Marinha, creio que se deve escolher uma base, para os
seus hidroaeroplanos, o mais perto possível da cidade do Rio, que é onde vivem
os oficiais e alunos. Aproveito esta ocasião para fazer um apelo aos senhores
dirigentes e representantes da Nação para que dêem asas ao Exército e à Marinha
Nacional. Hoje, quando a aviação é reconhecida como uma das armas principais da
guerra, quando cada nação européia possui dezenas de milhares de aparelhos,
quando o Congresso Americano acaba de ordenar a construção de 22.000 destas
máquinas e já está elaborando uma lei ordenando a construção de uma nova série,
ainda maior; quando a Argentina e o Chile possuem uma esplêndida frota aérea de
guerra, nós, aqui, não encaramos ainda esse problema com a tenção que ele
merece!
Rio de Janeiro, 16 de
novembro de 1917.
Santos-Dumont.
S. Exa. agradeceu-me e
disse-me que, no futuro, se tivesse necessidade de meus conselhos, me
preveniria.
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* *
O parque de meus
dirigíveis, que se achava em St. Cloud, media um décimo de quilômetro quadrado.
Quando me lancei na aviação procurei um maior, que foi o de Bagatelle; tinha
perto de um quilômetro quadrado. Logo após de meu vôo de 250 metros, vi que
este campo era demasiado pequeno e fui instalar-me em Issy-les-Moulinaux, -
mais de um quilômetro quadrado - porém, cercado de casas; vi os defeitos. Fui
então para St. Cyr, campo militar de somente alguns quilômetros quadrados,
porém, contíguo a grandes planícies.
*
* *
Vêem, portanto, que
dou imensa importância a um campo de aviação; dele depende o êxito na formação
de aviadores: sinto pois, que o Aero Club, do qual tenho a honra de ser
Presidente Honorário, não tenha seguido os meus conselhos, de abandonar, há
muitos anos, o Campo do Afonsos; sinto que ele não tenha se servido do hangar
que construí na praia Vermelha, ao lado do mais lindo dos aeródromos - a Baía
de Guanabara.
Sei que o Aero Club,
vai, agora, abandonar os Afonsos.
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* *
É tempo, talvez, de se
instalar uma escola de verdade em um
campo adequado. Não é difícil encontra-lo no Brasil. Nós possuímos, para isso,
excelentes regiões, planas e extensas, favorecidas por ótimas condições
atmosféricas. Antes de tudo, porém, é preciso romper com o nosso preconceito de
medir por metros quadrados um campo de aviação e de procura-los nos arrabaldes
das grandes cidades.
Em França diz-se que
um campo tem tantas dezenas de quilômetros quadrados; em Inglaterra e Estados
Unidos, fala-se em milhas quadradas; no Chile e Argentina, fala-se em léguas
quadradas; aqui, neste imenso e privilegiado Brasil, fala-se em "metros
quadrados". É preciso considerar, antes de tudo, que, mesmo na hipótese de
um milhão de metros quadrados isto
seria apenas um quilômetro quadrado, apenas 1/36 de uma légua quadrada! Um
aeroplano moderno, que faça 200 quilômetros por hora, partindo do centro de um
campo de tais dimensões, em menos de 9 segundos estaria fora do perímetro do
aeródromo!
Fora do aeródromo,
está em zona perigosa, principalmente para os principiantes.
Não falemos nas
desvantagens de morarem os alunos longe dos campos. Eles precisam dormir
próximo à escola, ainda que para isso seja necessário fazer instalações
adequadas, porque a hora própria para lições é, reconhecidamente, ao clarear do
dia.
*
* *
O nosso governo
possui, a duas horas do Rio de Janeiro, o esplêndido e vasto campo de Santa
Cruz, com perto de duas léguas quadradas, absolutamente planas.
O terreno onde houver cupim ou outras irregularidades
não servirá.
Margeando a linha da
Central do Brasil, especialmente nas imediações de Mogi das Cruzes, avistam-se
campos que me parecem bons.
O campo de remonta do
exército, no Rio Grande do Sul, deve ser ideal.
Sinto-me perfeitamente
à vontade para falar com esta franqueza aos meus patrícios, para quem a minha
opinião, porém, parece menos valiosa que para os americanos do norte e
chilenos. Sinto-me à vontade porque ela é inspirada pelo meu patriotismo,
jamais posto em dúvida, e nunca pelo meu interesse. Nunca me seduziu uma
posição oficial ou remunerada, pois pretendo levar a vida que até hoje levei,
dedicando o meu tempo às minhas invenções.
Há vinte anos que vivo
para a aeronáutica, nunca tive privilégios, fiz vôos sempre ao lado do meu
atelier para, apenas, verificar uma invenção de que nunca procurei auferir
benefícios.
*
* *
Penso que, sob todos
os pontos de vista, é preferível trazer professores da Europa ou dos Estados
Unidos, em vez de para lá enviar alunos.
Estou certo que os
rapazes brasileiros que fossem ao estrangeiro aprender a arte da aviação, se
fariam esplêndidos e corajosos aviadores. Entretanto, não nos esqueçamos de que
nem todo aviador é bom professor. Para ensinar uma arte não é bastante
conhecer-lhe a técnica, mas é preciso, também, saber ensina-la.
É possível que, dentre
4 ou 6 rapazes que forem estudar na Europa, se encontre um, bom professor;
isto, porém não passa de uma probabilidade. Mais acertado e mais seguro,
portanto, seria escolher, desde logo, alguns bons professores, entre os muitos
que há na Europa e nos Estados Unidos, e contrata-los para ensinar a aviação
aqui, em território nosso.
*
* *
Os aeroplanos devem
ser encomendados às melhores casas européias ou americanas, cujos tipos já
tenham sido consagrados pelas experiências na guerra.
*
* *
Resumindo, pois, penso
que não teremos aviação de verdade, enquanto não possuirmos um grande campo, de
léguas quadradas, ou mesmo um pequeno, de alguns quilômetros, rodeado, porém,
de grandes planícies que, não obstante não pertençam à escola, ofereçam bom
terreno para a descida do aparelho em caso de necessidade. Precisamos também de
professores experimentados na arte de ensinar aviação e que morem, com os
alunos, próximo à escola.
*
* *
Já me fizeram sentir
que eu não voava mais e, entretanto, pretendo, ainda, dar conselhos. Não
obstante, tenho-os dado com a máxima sinceridade e franqueza, certo de que
aqueles que me ouvem se lembram de que eu não fui apenas aviador, mas que me
foi necessário estudar, pensar, inventar, construir e só depois voar! Nos
Estados Unidos, Wright, Curtiss, etc., foram aviadores precursores, já não voam
há 10 anos e agora estão encarregados da organização e construção da
aeronáutica. Em França, Bleriot, os Farman, os Morane, etc., foram aviadores
precursores, não o são mais há muitos anos e também estão utilizados pelos seus
governos para a construção e organização da navegação aérea. Clement, Delauney,
Marquis de Dion, Renault, etc., foram todos "chauffeurs", porém,
agora, são considerados os inventores do automobilismo e estão encarregados da
sua construção e organização.
Estes senhores foram
"chauffeurs" ou "aviadores", como eu também o fui. Não mais
o sou, como também eles também não o são; mas, o dom de inventores, a aptidão
de organizadores e de construtores e este conhecimento das necessidades da arte
que eles inventaram e praticaram lhes ficou, e os seus governos os têm sabido
aproveitar.
*
* *
O título de aviador
que continuam a dar-me, sem que o mereça, há já dez anos - pois, a última vez
que conduzi um aeroplano foi em 1908 - tem ainda, para mim, um outro lado
desagradável, e é o de causar desapontamentos a amigos e admiradores nas
cidades do interior por onde passo.
No primeiro dia,
grande alegria; mas quando são prevenidos que não trouxe aeroplano e que não
vou voar, há um grande desapontamento.
Cito um caso que se
passou ultimamente. Chego a uma cidadezinha do interior e encontro um amigo e
companheiro íntimo de colégio. Havia justos 30 anos que não nos víamos. Grande
prazer dos dois por nos encontrarmos. Proponho passeios a pé ou a cavalo,
durante os quais discorreríamos sobre os tempos antigos. O meu amigo opõe-se,
pois já não está mais em idade de subir montanhas a pé, e mesmo já lhe é
desagradável andar a cavalo! Nos nossos passeios, em "charrete", o
meu amigo, que é muito espirituoso, fez-me rir contando anedotas da nossa
infância; porém, a um momento dado, pára e diz: - Já rimos bastante; agora
vamos falar sério: os habitantes da cidade e eu, estamos muito descontentes
contigo; pois vens passar aqui alguns dias e não fazes um vôo! Que custa
mandares um telegrama e fazer vir o teu "realejo"? Tocarias a
manivela e nos mostrarias o que és capaz de fazer!
- Pois bem, caro
amigo; você sente-se já cansado para fazer longos passeios a pé ou a cavalo;
eu, que tenho a sua idade, com a diferença que levei a vida mais agitada que um
homem pode levar, arrisquei-a centenas de vezes e via a morte de perto em
várias ocasiões; pois bem, você acha que eu deva ainda praticar esse
"sport", o mais difícil de todos e que exige nervos e sangue frio
extraordinários?! Não! não é um "realejo", e é por termos nós, os que
entramos na luta nos fins do século passado, reconhecido as dificuldades da
aviação, a necessidade para o aviador de possuir esplêndidos nervos, desprezo
completo e inconsciente pela vida, o que só se encontra na mocidade, e, também,
este outro dom dos jovens: a ambição de glória e o entusiasmo, repito, foi por
havermos reconhecido tudo isto e não nos encontrarmos mais nestas condições que
deixamos de ser aviadores.
É, pois, uma grande
homenagem que prestamos aos aviadores do presente.
O meu amigo, um pouco
confuso, responde: - "A culpa não é nossa, tinham anunciado que o aviador Santos-Dumont estava na Santos-Dumont estava na
cidade..."
*
* *
Eu, para quem já
passou o tempo de voar, quisera, entretanto, que a aviação fosse para os meus
jovens patrícios um verdadeiro sport.
Meu mais intenso
desejo é ver verdadeiras escolas de aviação no Brasil. Ver o aeroplano - hoje
poderosa arma de guerra, amanhã meio ótimo de transporte - percorrendo as
nossas imensas regiões, povoando o nosso céu, para onde, primeiro, levantou os
olhos o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão.
SANTOS=DUMONT